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O dever de ocupação efetiva em Portugal e Espanha

Texto da coluna do IBDD

O contrato de trabalho gera obrigações para ambas as partes. A principal obrigação do empregador é pagar os salários ao empregado, enquanto este tem o dever primordial de prestar o serviço para o qual foi contratado. A obrigação de um é direito do outro, assim o patrão tem o direito de ver o trabalho executado, enquanto o empregado tem o direito de receber o salário.

A questão que se põe aqui é: o empregado tem direito a trabalhar? Ou ainda: o empresário tem o dever de ocupar o trabalhador? Isso aplicado ao futebol teríamos: o atleta tem o direito de jogar? E mais: o clube tem o dever de colocá-lo em campo?

O dever de ocupação efetiva, ou direito à ocupação efetiva, dependendo do ponto de vista, foi consagrado na legislação espanhola, e posteriormente na portuguesa. O RD 1006/1985, no art. 7.4, prevê o que já era consagrado pelo Estatuto de los Trabajadores, o dever do empregador em proporcionar ao empregado uma ocupação efetiva. Em Portugal, a Lei nº 28/98, que regula a relação laboral-desportiva, no art. 12º/a, consagrou este direito antes mesmo da legislação comum, que hoje o contempla no art. 122º/b, do Código do Trabalho.[1]

Antes mesmo da consagração deste dever no Código do Trabalho português, ele já era aceito devido a construções doutrinárias e jurisprudenciais. Mas, quando colocamos essa questão à realidade do praticante desportivo profissional ela ganha novos contornos.

Para um atleta profissional, a falta de uma ocupação efetiva pode ser ainda mais prejudicial do que para trabalhadores comuns. O atleta precisa estar em atividade para manter a forma física e aprimorar a técnica. Mais do que isso, sem jogar perde notoriedade e tem sua carreira prejudicada.

Chegado o fim do contrato, o atleta que pouco atuou terá dificuldades em renovar o vínculo com o clube, e até mesmo em negociar com outro empregador. Neste sentido, Leal Amado afirma que: “o praticante desportivo precisa de se exibir, necessita de competir, sob pena de cair no esquecimento e/ou de ver desvalorizada a sua cotação no respectivo mercado de trabalho”. [2]

Só treinando o atleta se manterá em forma, e só jogando ele aparecerá como um artista de valor diante do público. Porém, o direito que a legislação garante ao atleta não é o de participar em jogos oficiais ou competições, mas somente o de não ser excluído, injustificadamente, de treinos e atividades preparatórias. Não se pode confundir o direito de trabalhar com um direito de ser alinhado para uma partida ou, muito menos, o direito de ser titular. [3]

Tanto a lei portuguesa quanto a espanhola preconiza o dever de ocupação efetiva do praticante desportivo apenas com relação aos treinamentos e demais atividades preparatórias. Cabe ao clube, através dos responsáveis técnicos, no caso o próprio treinador da equipe, decidir quais atletas atuarão desde o início, quais ficarão entre os reservas e quais não serão relacionados para a partida. Nos grandes clubes de futebol o elenco pode ultrapassar trinta atletas, e tendo em vista que apenas onze são titulares e mais sete suplentes, muitos atletas sequer serão relacionados para a partida. Cabe ao treinador tomar esta decisão, não havendo direito a qualquer jogador de ser incluído na lista dos convocados.

Desta forma, o direito à ocupação efetiva existe, mas é limitado. O direito não é pleno, abrange apenas os treinamentos e demais atividades preparatórias. Ou seja, nas palavras de Leal Amado, “em termos muito simples, o praticante tem o direito de treinar mas não o de jogar, tem o direito de se preparar mas não o de competir, tem o direito de ser adestrado, mas não o de ser utilizado”. [4]

Uma vez que o direito à ocupação efetiva se restringe às sessões de treinamento e outras atividades acessórias, e o empregador é responsável por determinar quem entra em campo, podemos vislumbrar algumas questões polêmicas. Por exemplo, os treinamentos em grupo separado, as equipes B e a desocupação como forma de punir o atleta.

O clube tem o poder de direção da prestação laboral, e pode determinar quando e onde serão realizados os treinamentos. A questão se choca com o dever de ocupação efetiva quando existem dois ou mais grupos de trabalho, onde o clube é quem determina quais atletas constituirão cada um. Existem diferentes razões para que o empregador separe os atletas, mas o seu afastamento do grupo normal de trabalho pode ser considerado uma violação do dever de ocupação efetiva, principalmente se essa manobra se dá de forma a punir o atleta por alguma indisciplina e não por razões técnicas.

O que se discute não é a utilização de grupos separados de trabalho e equipes B como forma de gestão de plantéis elevados, mas o afastamento de atletas para estes grupos como forma de punição. As equipes B, por exemplo, foram criadas no sentido de proporcionar aos grandes clubes condições para que coloquem em atividade os jogadores mais jovens, a fim de prepará-los para a disputa de competições pela equipe principal.

Não há nada de errado em determinar a um atleta que treine em separado, mas só quando esta medida tiver fundamento técnico, como o aprimoramento da forma física, a recuperação pós-tratamento médico, ou um treino específico para o atleta, como finalizações ou cruzamentos, se assim for necessário. Mas, o que pode acontecer, e realmente acontece no futebol, é o afastamento como punição por indisciplina, e esta atitude é a que se condena. O empresário não pode fazer deste afastamento um meio para constranger o atleta e até forçá-lo a pedir demissão.

Porém, a atitude do empregador, visando compelir o atleta a demitir-se, é uma atitude que pode se voltar contra o próprio empregador. Segundo Bengoechea e Ostolaza: “En tales casos de desocupación arbitraria, vejatoria, discriminatoria o que persiga el fin de que el deportista pida la baja voluntaria, habría motivo para que el deportista pidiera la resolución del contrato por incumplimiento del empresario”. [5]

Esta atitude do empregador, que infelizmente vemos com freqüência, é uma prática de má fé, e dá ao empregado o direito de pedir demissão com justa causa, recebendo todas as verbas a que tem direito. Porém, comprovar esta situação é que se demonstra um árduo serviço.

A extinção do contrato por iniciativa do atleta, com justa causa, devido à violação do dever de ocupação efetiva, não é exatamente a melhor solução, principalmente se levarmos em consideração as dificuldades probatórias que já ressaltamos. A melhor solução talvez seja a da legislação espanhola, que no art. 11.2, [6] concede o direito ao atleta em pedir a sua cessão temporária, obrigando o clube ao aceite, quando o jogador não tenha sido utilizado em nenhuma competição oficial.

A cessão temporária mantém o vínculo do atleta com o clube, mantém em vigor o contrato de trabalho, que fica suspenso durante o período de empréstimo. Enquanto isso, o jogador exerce a profissão ao abrigo de outro contrato, com outra entidade. Esta solução é louvável já que concede ao desportista o direito de buscar uma melhor condição de trabalho. Ao ser “emprestado” ele terá mais condições de atuar em partidas oficiais e exercer uma ocupação efetiva. Com isso, todos saem lucrando: o atleta poderá exercer sua profissão; o clube deixará de pagar-lhe os salários.

1 – A legislação desportiva brasileira nada prevê sobre o dever de ocupação efetiva.
2 – AMADO, João Leal, Vincuculação versus liberdade, cit., pág. 267.
3 – Nada impede, porém, que o contrato de trabalho firmado entre as partes preveja uma condição na qual o empregador se obrigue a escalar o atleta em determinada competição ou em um número mínimo de partidas. No caso de jogadores de mais renome e fama internacional é possível que seja incluída tal cláusula no contrato.
4- AMADO, João Leal, Vincuculação versus liberdade, cit., pág. 270.
5- SAGARDOY BENGOECHEA, Juan Antonio / GUERRERO OSTOLAZA, Jose Maria, El contrato de trabajo del deportista profesional, cit., pág. 70.
6- “El club o entidad deportiva deberá consentir la cesión temporal del deportista a otro club o entidad deportiva cuando a lo largo de toda una temporada no hayan sido utilizados sus servicios para participar en competición oficial ante el público”.

FERNANDO TASSO DE SOUZA NETO é advogado, Mestre em Ciências Jurídico-laborais e Desporto pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal na Faculdade Joaquim Nabuco, Defensor Dativo do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol de Pernambuco, Professor de Direito Desportivo, Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, Vice-Presidente e fundador do Instituto Pernambucano de Direito Desportivo.